Inimigos? Pra quê?

Era uma vez uma casa de cômodos, reais e virtuais, administrados por senhoria de carne e osso. Não havia aluguel. Loteavam-se os compartimentos entre os favorecidos da senhoria, companheiros na administração do condomínio. Era projeto coletivo de abrigo para sem-teto. A senhoria demorou a tomar pé das coisas na gestão da casa, achou por bem plantar espiões entre os condôminos, pois em poucos podia confiar. Em um ninho de cobras vivia, viviam todos a se picar, mas não morriam, imunizados pelo próprio veneno e pelos anticorpos protetores ao veneno dos vizinhos, componente integrado à corrente sanguínea do ofendido da vez. Na segunda gestão do condomínio resolve trocar as peças da casa, manda embora os que, na surdina, se tanto, pleiteavam seu lugar. Uns poucos pularam fora, antes que a casa caísse, outros ficaram, julgando-se acima da carne seca. Um dia a casa cai, caiu. Jorrou água pelo teto, resultado de goteiras às quais nunca se dera importância. O criador jogava xadrez e decidiu a hora de virar o jogo. Chamou escudeiros fiéis e prestigiados para ensinar à senhoria como se administrava um condomínio. Humilhação total. Os moradores da casa ficaram mudos, aterrorizados, no íntimo inconfessável arquitetando formas de defender o próprio puxadinho. Os condôminos virtuais é que surpreenderam, foram para cima da ex-senhoria, como urubus sobre a carniça. Destroçaram-na, jogaram cal, sem uma gota de misericórdia com seu inferno astral. Dizem que Saturno passa de 28 em 28 anos, não acredito, não. Em alguns casos se adianta, principalmente na segunda passagem, eclipsa tudo, não deixa pedra sobre pedra. Por falar em pedra, o senhor das pedreiras não perdoa. É implacável com os filhos que jogam por terra seus princípios de justiça e lealdade, é uma questão de tempo, é só esperar que ele vem e vem com tudo. Ira de Orixá é coisa séria, derruba pra não mais levantar. Quem brinca com fogo se queima, quem brinca com água se afoga, quem brinca com espada se corta. Contam que uma velha, filha de Oxum, hábil na ciência de matar, um dia acertou contas com a mãe. Morreu afogada em um rio seco, onde a água não lhe ultrapassava as canelas. Não é lei do bem contra o mal, é lei de reciprocidade. Acredita mesmo quem é do santo, quem não é, acha que tudo é lenda. Aquilo foi um espetáculo de deslealdade oferecido pelos condôminos virtuais. Detrataram as antigas práticas distributivas da senhoria, aquelas mesmas que os havia beneficiado. Convidaram o povo para malhar o Judas e depois acenderam fogueira ao redor, para queimá-lo ainda vivo. E o Judas gritava, urrava como a Senhora D de Hilst, desamparado, desesperado, em carne viva, pós-linchamento moral. E os ex-amigos sem dó, nem pena. Ele, na fogueira, busca os olhos de um, daquele que mais o atingira. Encontra-os em meio à fumaça e no suspiro último desfere: “Eu te amaldiçôo, oh rei dos sanguinários e dos ingênuos. Eu te salvei da morte, paguei tuas contas vencidas, te estendi a mão quando estavas sozinho e derrotado. Enviei mensageiros para te acalmar. E agora, o que fazes comigo, o que fazes de mim? Que tu subas ao cume das alturas, Id Amin maldito, e que a soberba, tua esposa mais constante, retire de ti a escada e o chão quando estiveres lá.” O algoz-mor não sorri, mantém o olhar gelado e limpa cinzas da lapela. Volta-se para o povo e grita: “Vamos malhar o Judas, pessoal!” (Ilustração: Iléa Ferraz)

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