Barack Obama e Dinha

Compro exemplar do Le Monde Diplomatique Brasil, n.36, impulsionada pela matéria de capa: “Obama – enfim, o fato novo.” Buscava novidades sobre Obama e a campanha dos democratas estadunidenses, ou uma análise política de grande envergadura que corrigisse meus erros interpretativos e robustecesse meus argumentos acertados. Nem uma coisa, nem outra encontro, os artigos eram mornos, tímidos até, e nada acrescentaram. A campanha está “apaixonante”, como diz o amigo Fernando, cientista político de mão cheia. Merece acompanhamento diário, em tempo real, pois tudo é tão veloz e mutante, que as publicações impressas e mesmo a televisão, têm comido bola. Há dias caiu uma assessora de Obama porque chamou Hilary de “monstra”. Agora cai uma assessora de Hilary porque afirmou que “Obama só está indo tão longe, porque é negro.” Um corta na própria carne daqui, a outra avalia que também é um bom lance de marketing cortar na própria carne dali. E tome bife nos costados de ambos. Lição representativa também, de que fogo amigo se combate em casa, antes de se tornar munição para o inimigo. No mesmo exemplar do jornal, surpreendo-me com um artigo da Dinha, a guisa do 08 de março. Dinha é poeta, autora de um belo volume de poemas “De passagem, mas não a passeio”, da Edições Toró, e segunda edição no prelo, pela Global, com direito a prefácio de Elisa Lucinda. Sua escrita me lembra a de Vilma Reis, de quem também sou fã. Ambas me trazem a ira santa dos injustiçados que sobreviveram e não se venderam. Acompanhem os primeiros parágrafos do texto e vejam se não tenho razão: “E por que será que eu, pobre, preta, favelada, nascida na Rua dos Ossos seria interesse para alguém? Seriam precisos quantos crimes, suicídios, ou quantas almas eu teria que vender? (Se o cabra dizia que era Deus, eu tinha que obedecer?) Devia falar de mor, calar sobre a distribuição de renda, ou dizer retoricamente apenas o que convinha? Devia mandar à merda toda a minha família? Botar Deus e diabo em um mesmo caldeirão? Devia ter pouco pudor. (Tudo o que o teu olho toca caberá em tuas mãos). Porque é preciso entender que o leite e a luta estão juntos, no caso de nós, as mulheres. E o que tantas pessoas confundem é que não há um valor para a luta. Militância não é emprego e guerreiras não recebem salários. Mas eu, preta, pobre, favelada, nascida na Rua dos Ossos, agora estou em evidência _ e não como vítima, reparem. Num lugar em que as mulheres são mortas pelos maridos, agredidas pelos filhos, torturadas pelas mini-saias, saltos altos e outras “burcas” do Ocidente, escolhi casar e ter filhos, e trabalhar na comunidade. Plantamos, casal, sementes de resistência. Mas quantos crimes precisaria cometer para estar na mídia? Pequena migrante, eu sabia: competência nenhuma eu tinha para seguir os caminhos “normais”. Então escolhi a escola. Sonhei que a educação era a chave para um outro mundo (im)possível. Um mundo em que, menina, nunca mais seria humilhada, nunca mais seria agredida, nunca mais seria violentada. Mas depois percebi que o respeito aqui não se tem, se compra (...) Por isso escolhi a favela e escolho ser Aqualtune. E quem sabe avó de quantos Zumbis eu serei? Se da serra da barriga das minhas filhas quantos quilombos virão?” Vejam também uma entrevista da escritora, publicada no blogue do Vaz, há uns tempos: www.colecionadordepedras.blogspot.com 1- Na sua opinião, qual a importância desta coleção da editora Global para a literatura brasileira? Dinha: A coleção apresenta um universo que, apesar de não ser estreante no cenário da literatura, é apresentado de forma sistemática, representativa, na medida do possível, de diversos gêneros literários produzidos nas periferias. Mas mais importante é que os leitores e leitoras terão a possibilidade de nos conhecer, rsrsrsr. Lógico. Porque o que vai nos conferir importância não é a coleção em si, mas a nossa sobrevivência, o fato de as pessoas nos lerem, ou não, depois que ser preto/a e pobre deixar de ser moda. A coleção possibilitará o acesso das pessoas aos textos produzidos pelas periferias. 2- E qual a importância desta coleção para as periferias brasileiras? Dinha: Depende. Se as pessoas tiverem acesso, poderá ser tão importante quanto o Hip Hop. As pessoas gostam de se verem representadas, de preferência, sem estereótipos, de forma realista ou não, mas respeitosa sempre. (Porque somos nós que estamos produzindo e eu, pelo menos, costumo me respeitar. Sei – porque sinto na pele – que somos a mesma pessoa: eu, minha família, meus vizinhos. Se um morre ou passa fome ou outro aperreio. Também sou eu quem estou morrendo, passando fome e todo o resto.) 3- Qual a importância desta coleção para vocês, escritores marginais? Dinha: A principal é a oportunidade de ser lido por outros públicos – periféricos ou não. Escrevo pra todo mundo. Faço questão de que todo mundo leia. Fico feliz quando uma moradora de rua (mais marginal que eu) lê e gosta dos meus poemas. Mas também fico satisfeita quando pessoas de outras classes e culturas lêem e gostam. 4- Prefere o termo literatura periférica ou literatura marginal? Existe diferença entre eles? Dinha: As palavras têm muito peso. Elas criam. Por isso discutimos as nomenclaturas. Mas, a princípio, é apenas uma questão de nome. Os ditos "marginais" e os ditos "periféricos" são hoje as mesmas pessoas. A diferença fundamental, pra mim, é que "marginal" até Caetano foi (uma amiga me lembrou isto uma vez). Periféricos ou, "de periferia", tem a ver com um contexto atual, difícil de confundir, por isso prefiro este último. 5- Considera que o adjetivo, tanto periférica como marginal, é usado de forma pejorativa, de modo a excluir vocês do time "oficial" de escritores? Dinha: A periferia é um mundo inteiro e tudo o que tem a ver com pobreza costuma ser tratado de forma pejorativa. Eu não me esforço pra parecer pobre. Sou pobre. Não tenho intenções de parecer e nem de ficar mais rica. Não admiro a outra classe. Se eu entrar pro tal time e não for lida pela minha mãe, filha, esposo, amigos, etc, de nada me serve a oficialidade. Digo isso porque cultura oficial, geralmente quer dizer cultura de elite, de quem tem poder aquisitivo. Essas pessoas, ou nos tratam como folclore, ou tendem a diminuir nossa produção cultural. Diante disso, a reação natural é reforçar que somos o que somos. Depois que estivermos bem firmes, deixaremos de desperdiçar energia com quem não vale o esforço e nos dedicaremos completamente à gente da gente. 6- A periferia lê a literatura feita na periferia? Dinha: Além dos livros publicados de forma independente, à revelia das grandes editoras e dos raros incentivos governamentais, existe ainda nas periferias diversos movimentos de acesso à leitura e formação de leitores e leitoras: são bibliotecas comunitárias, produção e circulação de fanzines, jornais de bairro, saraus literários e projetos independentes de oficinas literárias que possibilitam acesso à leitura sem que a gente deixe de comprar arroz e feijão. Significa dizer que a parte leitora da periferia, também lê seus próprios autores. 7- Os moradores da periferia terão acesso à coleção da Global? Lógico. Se não, pra quê publicar? Se não, pra quê servem as bibliotecas, saraus e tudo o mais que respondi na pergunta anterior? 8- O que significa uma grande editora lançar uma coleção de literatura marginal? Dinha: Significa que estamos sendo valorizados como autores/as, independentemente dos rótulos que se coloque. Mas significa também que estamos virando mercadoria vendável e que, portanto, corremos sério risco de virar escritores e escritoras rotineiras, de transformar nosso cotidiano, nosso mundo (com suas maravilhas e misérias) em material de consumo para outras classes – aquelas que não têm coragem de entrar numa favela, mas se delicia com esse contato "seguro". Significa que a luz amarela do farol está acesa. 9 - Você considera que tudo que vem da periferia ,ou é feito para e sobre a periferia, é positivo? Dinha: Nem o que vem da periferia e nem o que é alheio a ela são simplesmente positivos ou negativos. O Movimento Hip Hop, por exemplo, vem narrando, oralmente, através do Rap, várias nuances da perifeira. Isso é bastante positivo pra mim que nunca havia lido/visto/ouvido minha história, da minha família e dos meus vizinhos, a não ser a partir de olhares de fora, estrangeiros. Entretanto, o Movimento é mesmo machista e sexista , assim como a grande maioria das pessoas da nossa sociedade também o são. Isso não tira sua importância. 10 - Quais são os planos futuros? Dinha: Estudar. De preferência não trabalhar fora. Só para minha casa, família e comunidade. Cuidar das minhas filhas (a que é grande e a que está por nascer). Produzir e distribuir muitos fanzines (de graça, que é a melhor parte), participar de muitos saraus. Escrever muito. Até ano que vem, publicar o outro livro - "Morrer, só se morre uma vez?" – para o qual estou juntando munição. 11- Qual a maior contribuição dos saraus da Cooperifa ? Dinha: Reunir, compartilhar, multiplicar e produzir talentos entre nós, por nós. 12 - Como se tornou escritora? Dinha: Lia até pedaços de jornal velho – porque não tinha livros em casa. Depois comecei a escrever um diário, com uns 12 anos, mais ou menos. Como eu não tinha chave, percebi que as palavras poderiam dizer sem dizer. Comecei a usar metáforas como chave de palavras. Daí pra escrever poesia foi questão de tempo e muito segredo escrito. Depois senti vontade de mostrar. As pessoas gostaram e eu passei a produzir fanzines literários, com meus próprios textos. Faço isso até hoje. Me tornei escritora quando as pessoas passaram a ler meus trabalhos, multiplicar e pedir mais. 13 - Quais os autores te influenciam ou influenciaram ? Dinha: Li bastante Drummond, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Fernando Pessoa e Manuel Bandeira. Agora leio Cadernos Negros e autores de Angola e Moçambique ( que são coisas que eu estudo). Leio muito também os autores periféricos, ou que freqüentam o sarau da Cooperifa. Trocamos influências mútuas. Me influenciam também alguns rappers como GOG e o grupo Clã Nordestino. Me traduzem. 14- Se tiver alguma coisa que vc queira comentar...se puder também, conte o que anda fazendo. Dinha: Bom... acabei de casar, estou grávida de 6 meses, cursando mestrado na USP, na área de Literatura Comparada. Trabalho como educadora em uma ONG da cidade e sou responsável, entre outros, pela parte de saraus no Núcleo Cultural Poder e Revolução. Quero reforçar que apesar de escrever PARA todas as pessoas, escrevo, principalmente, POR mim. E eu sou mais que eu mesma. Sou meus irmãos, minha comunidade. Fico feliz que conheçam e admirem nossa história, nossa sensibilidade. Mas isso não significa que vou aliviar o lado de ninguém, nem me encantar a ponto de deixar de ser quem eu sou. Não quero enriquecer, sair da periferia e continuar a escrever sobre ela, de fora, como todo mundo que não é da periferia faz. Primeiro porque não tenho esse desejo, como disse, não admiro a outra classe. Não quero morar no Paraíso, Vila Madalena ou Morumbi, nem comer um pedaço de pizza que custe R$4,50, nem ter carro do ano, ou as outras coisas mais que desconheço. Quero mais é que as feridas se abram e o povo tome, à força se for preciso, o que é nosso por direito. Se eu fizer o contrário do que estou dizendo, me desconsiderem. Como diz o amigo, escritor e rapper Dugueto: Quem não tem valor, tem preço.

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