Você tem medo das palavras, Macabéa?

(Por: Glória Azevedo): "Quase nunca vejo TV, mas algumas vezes, para dar ibope à solidão, resolvo zapear por alguns canais e, numa dessas empreitadas, deparo-me com uma escritora sendo entrevistada por uma sorridente repórter no canal Futura. As perguntas eram sobre o processo de criação da autora, os títulos dos livros- muito bons- e a predominância dos contos sobre os romances. Tudo risonhamente respondido. A repórter passa então a falar sobre a narradora, em primeira pessoa, de um livro cujo casal protagonista são duas moças. As perguntas foram clássicas: se não foi difícil narrar em primeira pessoa com uma voz lésbica, se ela não teve medo de ser confundida com uma delas e se ela sofreu algum problema. A sorridente e sofisticada autora falou que antes de escrever o romance reuniu a família: marido e mãe, não chamou o pai porque este já estava morto. Família reunida, ela falou que iria escrever um livro, narrado em primeira pessoa, cujo casal eram duas mulheres, mas que a moça a quem ela daria voz não teria nada a ver com ela. Falou que a mãe retirou-se da sala e que o marido “deu força”, que era o papel dela como escritora (ou seja, o marido a autorizou). Falou também que por causa do livro ela sofreu um certo assédio das leitoras. Tudo isso foi comentado sorrindo e a repórter também sorria, talvez as duas se desculpassem e se justificassem para @s leitor@s do establishment temário brasileiro. A repórter e ela reforçaram a coragem de se criar uma narradora em primeira pessoa, lésbica! E eu, à medida que as ouvia, me espantava: como pode @m escrit@r, achar que tod@s @s mortais leitor@s confundirão narrad@r em primeira pessoa com @ própri@ autor@? Será que isso não é subestimar o poder de abstração e de separação entre ficção e realidade? Tá certo que hoje existem com muita propriedade os estudos sobre a escrita autobiográfica, mas isso são estudos acadêmicos em torno da obra de determinad@ aut@r,só que daí para uma escritora contemporânea ao escrever um romance “ lesbiano” ter que antes quase pedir a autorização da família, já é demais. Estive pensando: e se a autora tivesse criado uma narradora em primeira pessoa que fosse uma assassina, uma corrupta, ladra, serial killer, prostituta, ninfomaníaca, ela teria que comunicar à sua família que iria criar tal personagem e pedir que, pelo amor de Deus, não a confundissem com a personagem? Ela também correria o risco de ser confundida como tal pel@s leitor@s? E porque ser confundida com uma lésbica pode ser constrangedor e vergonhoso? A escritora bem que poderia ter dado um outro rumo à entrevista, poderia ter se posicionado como autora reflexiva sobre as relações sociais e de poder na literatura e na vida. É uma pena que o lesbianismo na literatura ainda seja tabu e que vozes importantes da contemporaneidade reproduzam, sem o perceber, um medo velado de serem confundidas (ou seria insultadas?) como lésbicas. Que bom seria se a escritora, quando da entrevista, tivesse falado no seu livro como processo de ficção atrelado à realidade, que aproveitasse para falar sobre a importância do seu livro ao tratar de um tema tabu, proibido e relegado à invisibilidade na literatura brasileira. Se usasse a entrevista para falar na importância da diversidade de temas das relações amorosas e das identidades na ficção. Se discutisse a construção dessas personagens no seu livro e se tivesse falado como se sentiu gratificada, enquanto escritora, ao ver se aproximarem leitoras surpresas e felizes com a feitura de um livro que aborda as relações amorosas entre mulheres. Mas não, a fala da autora foi um acerto de contas: sou casada, pedi licença à minha mãe e ao meu marido e não sou lésbica. Confesso que quando li o livro não confundi a voz narrativa em primeira pessoa com a própria escritora. E não é porque tenho formação em Letras, trabalho com literatura e leio Bakthin teorizando sobre as vozes do romance. Não confundi porque sou leitora e porque sei que entre voz narrativa e autoria vai uma certa separação e que @ aut@r quando faz autobiografia o faz deliberadamente. Mesmo assim, vale a pena ler o romance: é um livro bem escrito e maduro. excelente ficção, como não poderia deixar de ser. Ah, e se fosse autobiografia,também não seria problema algum, seria tão somente a perfeita problemática literária misturada à realidade. Afinal, é como diz Kafka:"tudo o que não é literatura me aborrece". (Olhos de Glória Azevedo, a autora). www.orisodemedusa.blogspot.com

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