Vozes marginais na literatura

Terminei na semana passada a leitura de "Vozes Marginais na Literatura", de Érica Peçanha do Nascimento, publicação bonita e bem cuidada da editora Aeroplano, Coleção Tramas Urbanas. O livro me arrebatou. Saí do lançamento com meu exemplar autografado e comecei a lê-lo no metrô, enquanto me dirigia ao hotel. Nos seis dias seguintes, queria chegar em casa rapidamente para prosseguir a leitura. Não me lembro quando foi a última vez que uma obra não-literária me tomou, assim. O estilo de escrita de Érica flui, seduz pela leveza, objetividade e fidelidade às construções discursivas dos informantes. Entretanto, merecíamos ler mais das reflexões sagazes da autora. Em certos momentos quis ver mais análise do discurso e menos reprodução das idéias dos informantes, por exemplo, no capítulo 3, "Por uma interpretação antropológica do movimento de literatura marginal dos escritores da periferia". Neste aspecto, parece-me que o livro deixou de ganhar em ousadia, atributo correlato ao conhecimento e perspicácia analítica da autora. Ainda sobre o estilo, um contraponto interessante à elegância da escrita de Érica é o posfácio do livro, um texto acadêmico burocrático, não-criativo, como lemos freqüentemente por aí. É embasada no quão longe Érica pode ir, ainda que limitada pelo alcance da minha mirada, que faço os comentários críticos a seguir, motivados pela leitura de um livro inspirador: 1 - Parece-me haver uma certa santificação das ONGs que têm apoiado o Movimento de Literatura Marginal em São Paulo. É honesto dizer que os saraus e outros aspectos da mobilização literária periférica pegam muita gente pelo coração porque o tema bombou e isso dá visibilidade política e pedagógica, aumentando assim, o poder de fogo junto a agências financiadoras. "Ninguém é inocente em São Paulo", já disse o Ferréz, num título muito feliz. Obviamente, sei que estou numa posição muito mais confortável do que a da autora para fazer esta observação, mas, de alguma forma, esperava encontrá-la no livro. No último capítulo, "A atuação político-cultural dos escritores da periferia", há elementos pouco explorados que, caso merecessem maior atenção, poderiam contribuir para posicionar a literatura periférica como voz autônoma e pró-ativa no mercado editorial brasileiro; 2 - Poderiam ser abordados os trabalhos de geração de renda e mesmo os empregos promovidos pela movimentação da literatura periférica; 3 - As estratégias de promoção e comercialização do objeto-livro no Movimento de Literatura Periférica merecem atenção, pois têm muito a ensinar ao mercado livreiro e 4, precisa ser debatida também, a questão da tiragem dos livros feita pelos autores periféricos e o quanto este grupo é precursor das doses homeopáticas de edição, feitas à conta-gotas, à medida que o livro circula. Lemos por aí uma louvação desmedida a editoras de classe média que têm adotado esta estratégia (publicação de um certo número de exemplares de acordo com a demanda e fôlego de circulação da obra) como se tivessem inventado a roda. Do lado de cá, a moçada da literatura periférica já vem fazendo isso há tempos, justamente porque tem feeling de mercado. Ainda que não tenha sido o propósito do livro, senti falta de mais comentários sobre as questões de gênero, sobre a ausência numérica de mulheres no movimento, sobre o machismo que as subalterniza, bem como do debate racial, que acabou se resumindo à auto-declaração de pertencimento racial dos informantes e de seus pais e à declaração reiterada de que um dos sujeitos entrevistados pertence ao Movimento Negro. "Vozes marginais na literatura" se impõe pela qualidade da escrita, pela riqueza de dados e adequação da análise, pelos resultados da pesquisa sensível e humanizada levada a termo pela autora e não, pela legitimidade do tema. Isso é fundamental, tanto para o trabalho de Érica, quanto para a literatura que fazemos nós, periféricos, negros, mulheres, gays e lésbicas escritoras e escritores, dentre outros sujeitos não canônicos. O livro de Érica nos convoca a que nos estabeleçamos no mundo literário por meio da literariedade dos nossos textos, pelo apuro da forma e pela universalidade que emprestamos aos nossos temas legítimos. De minha parte, aceito a convocação.

Comentários

Jéssica Balbino disse…
Que bela resenha ! O livro da Érica é realmente tudo isso :)
bj
Ricardo Aleixo disse…
Muitíssimo bem, Cidinha! Gostaria de ver esse assunto debatido mais vezes - com profundidade igual à que você imprimiu ao seu texto. Um beijo!

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