Wole Soyinka virá a Brasília, em abril

(Deu em O Globo). A arte e a política de Wole Soyinka "Numa das noites experimentais do Royal Court Theatre, espaço alternativo que começava a ganhar fama na Londres do fim dos anos 1950, Wole Soyinka, então um jovem aspirante a escritor recém-chegado da Nigéria, foi escalado para o papel de guarda de campo de detenção. A peça era inspirada no massacre de Hola, cometido no Quênia em 1959, quando agentes coloniais britânicos espancaram até a morte um grupo de prisioneiros nacionalistas. Minutos antes de entrar em cena, porém, Soyinka desistiu de atuar. O pequeno conflito que se seguiu a essa decisão, com os atores puxando o colega rebelde para o palco diante da plateia estupefata, diz mais que mil ensaios sobre os dilemas de representar a violência por meio da arte. Muito tempo depois, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1986, Soyinka relembrou a cena em seu discurso, justificando aquela recusa com uma série de perguntas: “Quando a representação é rejeitada pela realidade? Quando a ficção se torna presunçosa?”. Essas questões são centrais para um escritor e dramaturgo que sempre esteve profundamente envolvido com a política nigeriana, da luta pela independência contra as forças britânicas e a subsequente guerra civil, nos anos 1960, até hoje. Em 2010, ajudou a fundar um partido, a Frente Democrática por uma Federação do Povo, para enfrentar a coalizão conservadora que governa a Nigéria há mais de uma década. Autor será publicado no país pela primeira vez Às vésperas de vir ao país para a primeira edição da Bienal Brasil do Livro e da Leitura, que acontece em Brasília entre 14 e 23 de abril, Soyinka se define, em entrevista ao GLOBO, como “um artista que não consegue se isolar das atualidades”. — Às vezes a realidade reprova a atitude do artista de se apropriar dos mistérios e tragédias de outros. É uma relação de quase “distanciamento”, mas um distanciamento paradoxal, já que o artista escreve de dentro do meio social e nunca está totalmente distante. No entanto, alguns escritores, por temperamento, são mais afetados, às vezes até sobrepujados, pela realidade. Como escrever sobre o Camboja de Pol Pot? Ruanda? Darfur? Como um escritor sírio pode manter a fé na criatividade durante o massacre em andamento lançado por Bashar Al-Assad [presidente da Síria] contra seu próprio povo? Como não entender se esse escritor jogar seu laptop no inferno que um dia foi a casa de um vizinho e pegar a Kalashnikov mais próxima? — provoca o escritor. Aos 77 anos, Soyinka se equilibra há décadas nesse “distanciamento paradoxal” entre arte e política. Essa tensão também está representada em sua vasta e diversificada obra, que passa por teatro, poesia, romance e ensaio, e só agora começará a ser publicada no Brasil. Durante a Bienal de Brasília, a Geração Editorial lançará uma tradução de “The lion and the jewel” (“O leão e a joia”), uma de suas primeiras peças, escrita no fim dos anos 1950, durante sua estada na Inglaterra, e publicada pela primeira vez em 1963. Com um humor satírico e uma mescla inovadora de traços estéticos ocidentais e africanos, “O leão e a joia” é, ao mesmo tempo, uma exceção e um caso representativo na obra de Wole Soyinka (ver artigo abaixo). Situada numa aldeia nigeriana, a peça é protagonizada por um jovem professor educado nos moldes europeus e um velho líder local, que disputam o amor da mulher mais bonita da região. A estrutura aparentemente simples, explica Soyinka, serve tanto para falar em chave de comédia sobre “a antiga batalha dos sexos” como para investigar “o que constitui a modernidade e a tradição”. Parte importante dessa investigação é conduzida através de uma apropriação criativa da cultura iorubá, que compreende a maior parte da população da Nigéria. As peças de Soyinka, tanto tragédias quanto comédias, são repletas de referências a rituais, danças e orixás (seu preferido é Ogum, que representa “a dualidade do homem em seus aspectos criativo e destrutivo”, diz). Mas o resgate desses elementos tradicionais não é uma forma de idealizar a cultura africana em oposição à ocidental, ressalta. — Cresci na cultura iorubá e a evoco constantemente como uma crítica de outras culturas e sociedades, mas não como uma alternativa perfeita e impecável. Contudo, ela é uma opção. E isso é cada vez mais importante num mundo percebido e apresentado em termos de oposições binárias entre cristianismo e islamismo. A cultura iorubá considera essa divisão ressentida e arrogante, especialmente se levamos em consideração sua história sanguinária de preconceito, intolerância e expansionismo assassino — diz o escritor, nascido em Abeokuta, no oeste da Nigéria. A grande presença da cultura iorubá no Brasil fez com que Soyinka tivesse, desde cedo, uma relação próxima com o país. Em um ensaio sobre Lagos, ele nota como a megalópole nigeriana deve muito de sua identidade aos escravos retornados do outro lado do Atlântico: da arquitetura à culinária, da música aos sobrenomes como Pacheco e Silva. Em suas pesquisas sobre as formas dramáticas tradicionais da África, o escritor se deparou com a sobrevivência de muitos desses rituais no Caribe e no Brasil. Soyinka considera fundamental para sua carreira o contato com pesquisadores brasileiros na Nigéria, entre eles o crítico literário Antonio Olinto, adido cultural em Lagos nos anos 1960, e sua mulher, Zora Seljan, que publicaram diversas obras de ficção e ensaios em torno de temas africanos. Soyinka conheceu Olinto (que morreu em 2009) e Zora (que morreu em 2006) depois de voltar da Inglaterra, onde passou boa parte da década de 1950, primeiro na Universidade de Leeds e depois em Londres. Na capital britânica, além de “O leão e a joia”, escreveu outra peça, “The swamp dwellers” (“Os habitantes do pântano”, em tradução livre). Retornou ao país natal no início dos anos 1960, para dar aulas e pesquisar teatro africano nas Universidades de Lagos, Ibadan e Ife. Nas décadas seguintes, embora tenha experimentado vários gêneros literários, dedicou-se sobretudo ao teatro e pensou em si mesmo sempre como um dramaturgo. — O teatro oferece a própria vitalidade humana como meio de transmissão. Isso é algo incomparável — justifica Soyinka, que ficou conhecido em seu país por peças como “A dance of the forests” (“Uma dança das florestas”), apresentada nas celebrações da independência nigeriana, em 1960, e alertava para o risco de uma repetição dos erros do período colonial. Ao mesmo tempo em que consolidava seu prestígio artístico, Soyinka se afirmava como um dos principais intelectuais públicos da Nigéria. Teve uma atuação destacada contra a guerra civil deflagrada pouco depois da independência e, por isso, foi preso em 1967. Passou 22 meses na cadeia, a maior parte deles na solitária. Mesmo detido, continuou a ter suas peças encenadas na Nigéria e no exterior — ainda em 1967, “O leão e a joia” ganhou uma montagem em Accra, capital de Gana. Depois de ser libertado, continuou a escrever e a militar, o que o obrigou a enfrentar alguns períodos de exílio. — Apesar dessas ausências instigadas pela política, nunca realmente deixei a Nigéria, porque minha perspectiva do país sempre foi interna — pondera. Escritor é ameaçado de morte por extremistas Hoje, a Nigéria continua no centro de suas preocupações. Além dos protestos contra a corrupção e o autoritarismo, suas bandeiras de toda a vida, Soyinka tem alertado os compatriotas para o risco iminente de uma nova guerra civil, dessa vez provocada pela ascensão do fanatismo religioso. No mês passado, ele denunciou à imprensa nacional que está ameaçado de morte pelo grupo extremista islâmico Boko Haram, que domina parte da região norte e, por meio de uma série de atentados nos últimos anos, exige a implantação no país da sharia (código religioso muçulmano). — Vivemos o risco de uma guerra civil, e uma muito grave. A corrupção é curável. Não totalmente, porque nenhuma nação jamais conseguiu isso, mas pode ao menos ser controlada por meio de punições rigorosas e de uma sociedade civil alerta e resoluta. Mas a manipulação religiosa é a faísca fatal — alerta. Intitulado “Este passado precisa abordar seu presente”, o discurso de Soyinka na cerimônia do Nobel, que começava com a lembrança do jovem ator-escritor indeciso sobre como lidar com a violência por meio da arte, terminava com uma denúncia vigorosa das consequências do projeto colonialista europeu na África, mesmo após as independências. Mais de duas décadas depois daquele dia, o escritor acredita que ainda há muito que combater: — O racismo continua entre nós, e não é só uma questão da cultura e da filosofia ocidentais. Estereótipos e preconceitos só mudam de local e de contexto, não desaparecem. A ascendência de noções religiosas anacrônicas, com sua bagagem de intolerância, faz com que o presente esteja cada vez mais à beira do abismo. A Nigéria é o nosso exemplo atual mais sério."

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