Me leva, Calunga, me leva...

(Por: Cidinha da Silva). Acabo de assistir A travessia da Calunga Grande, espetáculo da Cia. Livre, e a Cabine de Controle não me deixa dormir. São os olhos do Grande Irmão, desnudados desde 1984, que reaparecem aterrorizantes. É a transmutação da Cabine de Controle. O texto é muito bom, bem construído, tem fio condutor e sabe onde vai chegar. Difere de um modelo que vem se tornando norma, pelo qual mata-se o ditador-dramaturgo, o ditador-diretor, e coloca-se no lugar dos perfis ditatoriais um texto frouxo, uma colagem esquizofrênica codinominada liberdade de criação coletiva. Os atores, e aqui falo mesmo dos homens, são excelentes, pelo menos quatro deles: Eduardo Silva, Sidney Santiago, Raoni Garcia e o pregoeiro, cujo nome escapou. A pesquisa dos mitos iorubá e gregos é consistente e vê-se que, de fato, sustenta com solidez o trabalho cênico do grupo. A música, percussão e piano, ele, também um instrumento percussivo, são discretos e dialogam com o todo. O problema é a Cabine de Controle presente na concepção/condução do espetáculo e nas revelações do público. No navio negreiro, cenário da peça, ocorre uma cena especial de agonia: um leilão de peças humanas. Reproduz-se o clima de um pregão escravocrata e a Cabine de Controle dentro dos expectadores desnuda-se em risos participativos cada vez mais sonoros, encorajados pelas manifestações divertidas em cadeia. Texto e atores demonstram habilidades louváveis no sentido de trazer o público para a cena, mas, mais do que eles, é a Cabine de Controle, a atriz onipresente! Vejamos: o pregoeiro apresenta jocosamente as peças em leilão, convida o público a utilizar patacas recebidas na entrada do espetáculo para comprá-las. A audiência atende ao chamado, participa entusiasticamente. Ao concretizar a venda, o pregoeiro imprime o brasão do comprador nas costas da peça adquirida. Para representar a situação, um bife de carne vermelha é colocado no ombro da peça da vez e o ferro quente é aplicado. A cena materializa veracidade e violência quase indescritíveis. O público consegue rir! O riso prossegue quando o pedaço de carne marcado a ferro é entregue numa pequena bandeja em mãos de cada comprador – é o certificado de posse! As peças compradas, cada uma com uma reação – de dor, ódio, medo, desespero, resignação – posicionam-se à frente dos compradores e, apenas nesse momento, parece que alguns percebem a falta de graça da cena. Um escravizado com expressão de ódio insiste em falar a própria língua, talvez o suahili, pois na frase há palavras banto, ditas com sonoridade árabe. Como recurso último da opressão, o protagonista é calado por uma mordaça de ferro. Boa parte do público pára de rir, mas um risinho ou outro, mesmo tímido, ainda é ouvido. Por fim, o escravizado amordaçado encara o comprador, fulmina-o com o olhar, único canal de expressão aberto em seu rosto. O algoz encolhe-se na cadeira, a Cabine de Controle foi ameaçada. Desculpem-me meus colegas de platéia, se sou velha, ranzinza, não tenho senso de humor e não sei rir de uma “simples ficção”, mas ali não vi graça, só agonia, dor e a presença acachapante da Cabine de Controle no barco Fortuna Tropical e em vocês, como parte eficiente da cena. A compreensão da Cabine de Controle é uma questão de ponto de vista e de vista de um ponto. O lugar de onde vejo o mundo é aquele da canção de Congada: “quando eu saí de casa / minha mãe me incomendô / oh... minha fia, ocê num apanha / que seu pai nunca panhô.” Processos educativos demoram toda uma vida, bem sei, mas há que haver celeridade para desconstruir a Cabine de Controle em todos os seus funestos mecanismos de garantia de poder e privilégios para os que sempre estiveram na condução do leme e sua descendência. Há que educar pelas nossas lentes, de objetividade mais profunda. Há que opor o sangue das lágrimas e do corpo do povo africano derramado na Calunga Grande, ao sal das lágrimas de Portugal no mar de Pessoa. À pena e ao teclado, meu povo! Ao palco! Às telas! Simbora escrever a nossa história! Simbora matar de morte matada, a Cabine de Controle!

Comentários

Nyame Nti disse…
Cidinha,
sobre A Travessia da Calunga Grande, que também tive a satisfação de presenciar, sua escrita identifica exatamente o que pude ver e sentir, inclusive/especialmente na fortíssima passagem do pregão [e os risos que vão (quase que totalmente) se apagando ao desenrolar da cena].

Compartilho de suas anotações e reflexões.
Obrigada por toda a sensibilidade que me deixa sentir, inclusive, porque o lugar de onde você vê "o mundo é aquele da canção de Congada". Ana

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