O fenômeno Célia e Olívia e as artimanhas do poder da raça e do gênero



Por Ana Cláudia Lemos Pacheco

"Independente das convicções políticas e ideológicas que cercam as candidaturas das Vices-prefeitas de Salvador, Célia Sacramento, candidata a vice- prefeita pelo PV (Partido Verde) na coligação com o DEM (partido dos Democratas) e Olívia Santana, candidata a vice- prefeita do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) coligada na chapa majoritária do PT (Partido dos Trabalhadores); é inconteste o “ salto” que estas duas candidaturas negras-femininas deram na apólice segura da hegemonia branca e masculina que há quatro séculos vem governando ou disputando o poder político na prefeitura de Salvador.

Poderia iniciar essa pequena reflexão com uma observação pela defesa ideológica e partidária com a qual me filiei e me identifiquei por muito tempo, ou então, poderia reproduzir o discurso do “faz de conta” que há um projeto político bem demarcado entre os partidos da esquerda e da direita, principalmente em relação a nós negros e negras, o que não há, com os quais os discursos mais plasmados têm se dirigido às duas candidaturas, ou então, poderia seguir a linha mais casual ventilada nas redes sociais, “mais uma vez, os negros continuam sendo figurinistas, não são protagonistas do poder, são subservientes... continuam na senzala ou a reboque do homem branco”.
Tais formulações esquecem-se que há mais de 500 anos, nunca tivemos duas candidatas negras que disputassem com maestria o poder branco- masculino, quer da direita, quer da esquerda à prefeitura de Salvador, salve engano, fora a eleição da Deputada Lídice da Mata como Prefeita, que respondia muito mais a uma especificidade de gênero e outras demandas, do que a de raça, fora esse episódio na história política de Salvador, os discursos e bandeiras dos movimentos sociais negros e do movimento de mulheres negras brasileiros nunca foram levados à sério pelas máquinas mortíferas partidárias do poder senhorial soteropolitano.

As várias tentativas de se criar um nome “negro” consensual para disputar as eleições majoritárias à prefeitura de Salvador, sempre foram frustradas no interior das organizações políticas, e verdade seja dita, as poucas tentativas que houve, não se privilegiou discutir o nome de mulheres negras. Ao contrário, nos grandes partidos de expressão no campo da esquerda e da direita, esta possibilidade não passou de simples quimera. A procura de um nome “forte” no interior dessas organizações partidárias que pudesse alavancar votos e derrotar o adversário político, nunca teve uma cor negra. Nem mesmo Edvaldo Brito, então candidato a prefeito de Salvador, há algumas décadas atrás, não conseguiu driblar esta barreira do racismo institucional presente nos partidos de esquerda e da direita baiana.

Nenhuma outra candidatura negra conseguiu expressar tão bem, na atualidade, e denunciar os mecanismos do racismo e do sexismo e desmontar as representações sociais e simbólicas de lugares que nós mulheres negras deveríamos sempre ocupar fora de um imaginário que nos aprisiona em papéis de subalternidade da “doméstica”, ou da hiper-erotização da “mulata”, do servilismo social e sexual da negras, aos quais somos sempre vinculadas, como bem lembra as feministas negras Lélia Gonzales (1982) e bell Hooks (1995), somos vistas pela sociedade brasileira como “ só corpo, sem mente”.
Penso que as candidaturas de Célia e Olívia conseguiram instituir um novo paradigma político e epistemológico ao possibilitarem, pela primeira vez na história política de Salvador, uma reflexão forçosa do papel de nós mulheres negras na disputa política dessa cidade. É notório o impacto no campo político, na mídia, nas redes sociais, nas organizações negras; de como Mulher Negra, independente das distintas filiações e dos distintos projetos partidários aos quais fazem parte, ainda somos tratadas por nossos pares negros e brancos (as) como se nós fôssemos a “mucama” dos Sinhorzinhos da esquerda e da direita; esquecem-se da história de superação que Olívia e Célia, assim como outras mulheres negras, vem decantando em suas trajetórias sociais marcadas pela pobreza, pelo racismo, pelo machismo aos quais historicamente foram submetidas. Esquecem-se, também, das nossas avós, das nossas mães negras, que nos legou e nos lega uma história de protagonismo e de sobrevivência que devem estar presentes na nossa memória ancestral.

Memória essa que agora está sendo recriada em identidades subversivas, se olharmos do ponto de vista de nós Mulheres negras, tais identidades estão redesenhando novas possibilidades de fazer política com novos sujeitos sociais; isso não quer dizer ganhar as eleições, pois Célia e Olívia já são vencedoras antes mesmo de sabermos o resultado do pleito eleitoral.

A maior contribuição histórica que estas mulheres nos dão, é o mérito de introduzir nesse imaginário social um novo lugar para as mulheres negras que fogem à determinações das ideologias dominantes das representações sociais da senzala / casa grande; elas mesmas, driblaram tais hierarquias sociais, através do trabalho, da educação, da política, das estratégias familiares; desmontam com os discursos racistas que acreditam que nós negros somos incapazes intelectualmente e politicamente, a não ser no plano da subserviência ao poder branco; e desconstroem com as narrativas das hierarquias de gênero e raça, invertendo as regras do jogo da dominação cultural e política; eles que estão à “serviço delas”.

Em nenhum momento da história dessa cidade, viu-se duas mulheres negras “ roubarem” à cena da política e da mídia; elas viraram a grande sensação dessa cidade; são verdadeiras herdeiras da Luiza Mahin, que comandou com maestria uma das maiores rebeliões escravas no século XIX, na Bahia.

Por tudo isso, o que se está discutindo nesse texto, não é o que Neto e Pellegrino têm a dizer sobre nós, mas o que nós temos a dizer sobre como mulheres negras estão subvertendo a lógica da dominação racial e de gênero na “cidade das mulheres”.

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