O gato

Por Cidinha da Silva

Este texto compõe a dramaturgia do espetáculo "Silêncio" (2007), da Cia dos Comuns, processo coletivamente construído pelo grupo a partir de experiências.

Ele vem à noite e não me traz flores. Entra pelo telhado, se joga em minha cama, abre minhas pernas, rouba meus sonhos e eu me despetalo. Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer... A gata grita no telhado de onde ele veio. Dizem que pinto de gato tem espinhos. Machuca. Eu também grito no bumbo do meu peito: DE-SEN-GA-NO, DE-SA-LEN-TO, DE-SA-TEN-TO, DE-SEN-RE-DO, DE-SI-LU-SÃO. Ele me come e eu olho o teto. Vejo os meninos correndo, os filhos que ele não quer ter comigo. Os dele balançam os cabelos ao vento. "Saíram à mãe", me diz orgulhoso. Eu dou a ele me olhar de mar... de água de choro, doída por saber que ele não quer ter filhos parecidos comigo, nem parecidos com ele. Se reclamo do sexo de gato, ele me diz que sou a mulher da vida dele, igual a ele, de pele e alma. Só na minha cama ele dorme tranqüilo por algumas horas durante a semana. Na cama de todo dia não consegue dormir, fica em vigília, um olho aberto, o outro fechado. Diz que o inimigo dorme ao lado. Por isso ele está sempre em riste e mete por cima para ela saber quem manda. E dá uns tabefes nela para lembrar que é o senhor da força. De uns tempos para cá parou de bater, só ameaça para manter a pose, depois que levou uns tabefes na delegacia. "Na guerra é assim, minha filha, o vencedor come a mulher do inimigo. Você não entende? Eu mato um leão por dia. À noite preciso de uma presa mais fácil para abater. Não quero um espelho para ver meu rosto cansado, quero a mulher do inimigo, para me sentir vitorioso e para fazer filhos que não se pareçam comigo, que sofram menos do que eu. Entendeu?"

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