Capítulos iniciais do Kuami, de Cidinha da Silva




                                                    I

Janaína, a sereia da história, não nasceu das águas do sempre, como todas as outras. É filha do amor entre Hércules Baiacu e Naomi dos Palmares. Ela vive no Sereal, reino das sereias, próximo à pororoca, onde se misturam olhos apascentados pelo rio e outros famintos de mar. Plantas de água doce e algas de água marinha, seixos opacos trazidos pela maré e o ouro da Mãe d’Água, vindo na corrente do rio.
Hércules Baiacu, pai de Janaína, é um peixe robusto, de coração mole e garganta de cantor, além de ser desertor das águas do mar. É solista convidado do coral dos Cardinais Invertidos. Quando jovem, ficou conhecido como D. Juan dos igapós. Encantou moças várias para o fundo das águas, mas só Naomi vingou. Hércules se travestia de boto para seduzi-las, contam à boca miúda, e quando as moças se descobriam enganadas por um baiacu do mar, morador do rio, desfaziam as juras de amor eterno e retornavam à superfície. Ele, como legítimo imitador dos primos pacus, inchava de raiva.
Com Naomi fora diferente. Alertada pelas amigas sobre um certo baiacu galanteador, interessara-se por conhecê-lo. Pelo menos era criativo, além de cantor. Enquanto ele a cortejava, refletido na vitória régia como boto azulado, Naomi crivou-o de perguntas sobre a natureza dos baiacus, os gostos dos baiacus, as tradições familiares deles, épocas de piracema etc.
Hércules fitou aqueles olhos verdes estatelados num rosto negro e perguntou-se o porquê de tanto interesse pelos baiacus. Ouvindo seus pensamentos, Naomi respondeu: “estou me apaixonando por um”. Hércules inchou de novo, dessa vez, por contentamento e, encorajado, mostrou-se em sua inteireza baiacúnica.
Naomi cintilou a chama do amor novo, seguiu os olhos de Hércules como faróis e naquela noite mesma mergulhou no fundo do rio, para amá-lo. Foram viver no Sereal, onde a areia era fina e branca, pontilhada por estrelas de múltiplas pontas. À passagem dos noivos, pérolas coloridas fugiam da boca das ostras enquanto o coral de Cardinais Invertidos solfejava notas musicais no glub-glub característico dos peixes.
                                             
                                                 II

A vizinhança do casal era seleta: ao Norte, localizava-se o reino dos cavalos-marinhos; ao Sul, o próprio reino da Mãe d’Água, rodeado de cristais submarinos e imensas rochas douradas; a Oeste, um reino de tucunarés brincalhões que enfeitavam o mundo das águas com crustáceos brilhantes; e a Leste, a  pororoca, onde o rio se perdia no mar.

O coral dos Cardinais arrebatou Naomi à primeira audição. Ela, quando jovem, fora back in vocal de um sambista famoso, o Paulinho da Viola Mágica. De tanto ouvi-lo cantar o mar, nascera em seu coração o gosto e a curiosidade pelas águas.

Naomi era cercada de música por todos os lados; a avó fora cantora de rádio, contemporânea da voz possante de um Buda Nagô que versejava: “quando a maré baixar, vou ver Janainaê, vou ver Janaína, vou ver Janaína.”  Era feliz no Sereal e tinha desenvolvido um jeito próprio de lidar com a saudade. Nos dias em que ela atrasava as batidas do peito, enchia-o de ar e dava braçadas fortes até o igapó mais próximo. Debaixo d’água, apurava os ouvidos para escutar o rádio de pilhas de algum pescador dorminhoco. Às vezes tinha sorte de ouvir uma canção do Paulinho, como a daquele dia: hoje eu vim minha nega, como venho quando posso... Nessas horas, o coração de Naomi pulsava como uma caravana no deserto, devagarzinho, no ritmo da lembrança doída.

O som da música do Paulinho acompanhava seu caminho de volta ao Sereal, enquanto as lágrimas se perdiam na água. Mas, algo além da sonoridade a seguia. Quando ela se volta para trás em busca da origem do som, encontra, entre a surpresa e a felicidade, o brilho do canto de Hércules: as coisas estão no mundo, só que eu  preciso aprender. E assim viviam, construindo a felicidade cotidiana.

Numa manhã de primavera, Naomi agita as águas mornas da vida e anuncia a gravidez. Hércules cantarola estrelas de contentamento, reúne os Cardinais Invertidos e faz sete noites de serenata para saudar a vida gestada por sua amada.
Em tempo nasceu a sereiazinha mais graciosa do Sereal. Foram vinte e um dias de festa e uma procissão de visitantes dos reinos vizinhos trazendo mil presentes. A própria Mãe d’Água mandou um Acará mensageiro convocar a menina ao palácio.
Para escoltar a família Palmares-Baiacu, a Senhora das Águas enviou uma comitiva de peixes-espada. Num balé de guerreiros, eles cruzavam as lâminas regidas por Ogum Marinho, saudando os navegantes no caminho das águas de seixos dourados.

Ao receber Janaína das mãos de Naomi, a Mãe d’Água carregou-a num abraço forte e cheio de mimos. Olhou os olhos vivos da pequena sereia e sem desviar os seus, sentenciou: “essa menina vai voar por terras distantes.” “Mares, talvez”, contemporizou o pai Baiacu. “Não, meu filho, terras”, insistiu a Mãe d’Água. Os pais se entreolharam. Naomi, embora  surpresa, manteve-se serena. Hércules, no entanto, ameaçou inchar de preocupação. A Mãe d’Água, alheia ao sentimento dos pais, andava pelas salas espaçosas do palácio, em conversa secreta com Janaína. E ria, contava histórias, suspendia a menina acima da própria cabeça.

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