Carnes frescas e afins



                                                                                                                  
Por Cidinha da Silva

 Ninguém me tira da cabeça que aquilo era carne de cavalo. Seu Benzoildo nunca inspirou confiança como dono de açougue. Virava e mexia, o pessoal passava mal ao comer a carne dele, digo, do açougue “Carnes Frescas e Afins”.
      
Você fritava, a bicha endurecia, parecia filé de pneu na hora de mastigar. Refogava, a bicha espumava e exalava mau cheiro de espantar urubu.
            
Carne de gato não era segredo que ele vendia. Quem tinha gato no bairro passou a prender em gaiola, amarrar em coleira, pra proteger dos facões amolados e das mãos ligeiras de seu Benzoildo. Gatuno de gatos. “Achado não é roubado”, defendia-se. Pegava os bichanos na rua para alimentar... “deixar gordinhos e passar a faca”, a vizinhança completava. Desenvolveu a tese, assimilada pela população, de que a carne de gato era prima da carne de coelho, portanto, apropriada ao consumo humano. O povo aventava que carne de cachorro também era vendida no estabelecimento. Como ele matava cada espécie de bicho era tema de churrascos, cervejadas, rodas de truco e samba da moçada.
             
Certeza mesmo tiveram no dia em que seu Benzoildo diversificou os negócios e abriu, no bairro vizinho, uma revenda de couro de animais para tambores. Ele só não esperava que alguém reclamasse. Dona Ermira visitou a loja, reconheceu o couro do Dirceu, seu gato, comprou, represando as lágrimas. Candidamente solicitou nota fiscal, com especificações detalhadas do produto. Juntou fotos do bichano, fotografou o couro, amealhou testemunhas e perfilou-se no juizado de pequenas causas para dar queixa.
            
O juiz, para infortúnio de seu Benzoildo, estava enlutado pelo desaparecimento do Hildo, seu gato, preto como uma pantera. Encolerizou-se, proferiu sentença de fechamento do estabelecimento e intimou seu Benzoildo a depor. O depoente esperneou, negou as acusações, alegou inocência, perseguição política e simulação de provas. Não adiantou. Começava a derrocada de seu Benzoildo.
            
Solerte, o juiz expediu outro mandado, desta feita acionou a Vigilância Sanitária para vistoria criteriosa no açougue “Carnes Frescas e Afins”. Onde já se viu – “afins” –, o proprietário mesmo já se denunciava. Chegaram homens e mulheres vestidos de branco, com máscaras esquisitíssimas, botas, luvas, pranchetas, vidros para coletar amostras, máquinas fotográficas, um arsenal. O povo juntou na porta do açougue, alguém tratou de escrever uns cartazes, bradavam por justiça. Fizeram uma lista enorme com o nome dos gatos desaparecidos e afixaram no poste. Leram para a rede de TV que apareceu por lá. Seu Benzoildo não cria no que via.
            
Uma técnica da vigilância sanitária examinava as paredes do fundo do açougue com um martelinho e a cada toc-toc, colava o ouvido para examinar o som produzido. Encontrou o esperado, chamou uma colega de trabalho para conferir. Era mesmo barulho de coisa oca. Sem dificuldade, lastreados pela experiência, encontraram o fundo falso, forçaram e chegaram ao início do túnel que levou a equipe de sanitaristas a um quarto fétido e mal iluminado, nos subterrâneos do “Carnes Frescas e Afins”. Lá depararam com dezenas de peles de gato penduradas em varais, algumas cabeças de cavalo com olhos estatelados, fixadas na parede, tíbias e fêmures imensos, provavelmente dos cavalos mortos, amontoados em um canto, infestados de moscas e varejeiras. Abriram uma porta menor e encontraram cachorros à espera do desossamento, apenas sem couro, semi-congelados.
            
Completava o cenário de horror os instrumentos usados para matar os bichos, tirar o couro, desossá-los. Fotografaram tudo, coletaram amostras e imediatamente ligaram para o juiz: “Olha dr. Anacleto, tem infração suficiente pra ele envelhecer na cadeia”. O mandado de prisão foi imediato. A polícia foi chamada para conter a multidão furiosa que queria depredar o açougue. Alguém mais lúcido conteve a massa, argumentando que se destruíssem o lugar, ajudariam o açougueiro, pois destruiriam as provas. Começaram a chegar advogados, firmas de advocacia, oferecendo-se para mover ações indenizatórias contra seu Benzoildo. Parecia saguão de aeroporto em dia de acidente aéreo, bando de urubus querendo uma lasquinha.
            
Foi assim que o bairro do antigo “Carnes Frescas e Afins” se tornou um enclave vegetariano na região.

Do livro "OH, MARGEM! REINVENTA OS RIOS!"

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