Salvador, negro rancor!




Por Cidinha da Silva

O título assusta, mas não é tudo isso. Não espere o predomínio do rancor no livro de Mandingo. A obra prima pelo amor àqueles seres comuns desacostumados à radiografia  de sua complexidade humana. Personagens aos quais, usualmente, a literatura não confere dignidade. Mandingo, mandingueiro como um velho mestre de Angola nos ensina como fazê-lo.

Salvador negro rancor é um livro de crônicas, e que crônicas, de um autor de muitas faces. Ora me lembra Fernando Sabino nos textos mais longos sem crise de asma, que não perdem fôlego e ritmo pelo caminho, tampouco o cronista se embaralha na teia narrativa. Em “Cisco” me lembrei de João do Rio. Em “Raska” foi Pedro Juan Gutiérrez, quem veio me visitar.

Mas as duas primeiras crônicas (crônicas mesmo, não são contos a meu ver) são só aquecimento de motores. Mandingo surge pleno, uma chapa de frente no peito desavisado, em “Paulista.”

Entretanto, o jogo é de Angola, é preciso calma, atenção e astúcia, a um só tempo, para não deixar escapar as inúmeras delicadezas da linguagem refinada do mestre. Em “Cisco”, por exemplo, o narrador nos diz que os meninos “subiram abraçados a Alfredo de Brito brincando de lealdade só pra gastar o pânico e dar tempo de escolher uma outra presa. Encardidos até o sangue, sujos mesmo, cobertos com camisas enormes, vestindo até o meio das canelas. Não se pode dizer se são mesmo crianças, se não cresceram, ou se encolheram.”

E ele continua: “A periferia tem um ódio estranho dos seus entes mais vulneráveis: Loucos, mendigos, homossexuais, moradores de rua, viciados. São vítimas preferenciais desse sadismo urbano, que se compraz em pisar a cabeça do que anda ainda mais fodido que a maioria.” É uma formulação fantástica, sistematiza de maneira incisiva o apoio que as “famílias de bem” periféricas dão à morte de jovens negros pela polícia – pelo menos enquanto um dos seus não é morto.

Mandingo é o João do Rio do Pelô quando descreve o papel do crack naquela área, durante os anos 90: “Mortes, agressões, incêndios na calada da noite, nada foi tão eficaz pra calar a boca dos mais resistentes quanto o crack. Peão recebia de dia a indenização, de noite já tinha tudo ido na fumaça.”

Em “Kaska” a linguagem cinematográfica de Mandingo lembra Pedro Juan Gutiérrez,  mas não só, a ambiência negra de Salvador, nossa Havana, também sofre, como a capital cubana, com o gringo super invasivo. Habaneros e soteropolitanos têm uma espécie de fixação neles:  “Existe no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, na Bahia, uma novíssima e pós-moderna categoria sociológica, única característica desta região, facilmente detectável em qualquer rápida pesquisa, mas ainda não completamente estudada e fixada por sociólogos, antropólogos ou historiadores da história recente que povoam suas ruas e vielas: o gringo carente.”

Em “Paulista”, Mandingo vem inteiro. Outra vez traz Pedro Juan, manufatura uma crônica que flerta com o conto por meio de personagens muitíssimo bem construídos. Vem junto Rachel de Queiroz, cronista de mão cheia em suas descrições de Minas Gerais e do rio São Francisco como caminho obrigatório para quem queria chegar ao Rio de Janeiro entre as décadas de 20 e 40 do século XX. O personagem de Mandingo faz o caminho contemporâneo, Belo Horizonte como passagem praticamente obrigatória de quem vem do Nordeste buscando chegar a São Paulo. Assim fizeram Rita Ribeiro, Chico César e tantos outros artistas e o fazem também as pessoas comuns, como Paulista.

Como belorizontina, acho que o pessoal do Nordeste aporta em BH buscando uma cidade grande menos agressiva do que São Paulo e Rio de Janeiro, uma espécie de porto preparatório para a metrópole que virá. Só que, em pouco tempo descobrem uma cidade provinciana, que muito pouco acrescentará ao que já tinham conquistado em sua cidade natal.

Entretanto, dou a mão à palmatória,  BH é uma cidade surpreendedoramente acolhedora para as pessoas vindas do Nordeste, especialmente para os baianos, xodó dos belorizontinos (pelo menos os negros). E essa ilusão de porto pode também ser atrativa (e necessária).

São Paulo, por sua vez, é uma metrópole que não acolhe ninguém, mas lá cabe todo mundo. Cabem também os sonhos grandes que não se encaixam em outros lugares. São Paulo não é amor, exatamente, como radiografou o Itamar. São Paulo é identificação absoluta. São Paulo sou eu. Eu não me amo, mas me persigo. Eu persigo São Paulo. São Paulo é identificação absoluta. Belo Horizonte é amor, para quem chega de fora.

Diante do susto da personagem que vê um menino de idade mínima bebendo cachaça, o pai de rua explica: “Nóis vivemo na rua fio, eles se perdem fácil, e nós somos uma família e tal, eu tenho que mostrar pra eles toda hora que eles também faz parte, que eles são iguais a nóis, senão eles se perdem fácil...” Mandingo incorpora aquilo que um dia disse Raimundo Carrero: “Autor não tem estilo. Quem tem estilo é o personagem.” Ele é um autor quilombola (livre e libertário, em essência) não se impõe sobre a personagem, não faz juízo de valor, deixa que ela se manifeste e flua.

Sobre a casa do morador de rua, o pai de rua ensina: “Casa fio, prende a gente num lugar só, a gente vira bicho enjaulado. Aqui eu faço minha casa onde eu quiser e carrego minha casa comigo. Cada noite eu posso escolher um coió onde nóis vai dormir e sou eu quem faço a casa e não ela que me faz, ta ligado? Melhor do que ter as coisas pra perder é você ter o que não pode perder, ta ligado?” Mora na filosofia? Para que rimar amor e dor?

Só quem conhece no detalhe a vida das pessoas na rua é capaz de descrevê-la com verossimilhança. Mandingo vai mais longe, consegue dar a ela a humanidade possível: “Sem camisas, abríamos um encanamento embutido no subsolo da praça, e tínhamos água limpa pra tomar banho e lavar as roupas. Nesses momentos, os meninos brincavam de ser crianças e corriam e se molhavam puxando o cachorro pra cima e pra baixo, enquanto nós colocávamos as roupas pra enxugar sobre o capim.”

O autor humaniza as personagens, mas sem romantismo, nem lubrificante. O eu lírico vai e volta, e a dureza do asfalto e da cachaça não deixa de gritar na crônica: “Poderosa era um ser mitológico: idade indefinida, raça indefinida, sexo indefinido. O álcool levara suas feições embora, seus dentes e boa parte de seus neurônios.”

“Paulista” mostra como os protagonistas experimentam tudo o que a vida na rua oferece como meio de sobrevivência, desde a contravenção pequena, à venda de maconha e outras drogas mais pesadas, que não machucam ninguém, passando pela recepção dos objetos que os playboys roubam das famílias para trocar por cocaína, e pelo assalto à mão armada, quando a necessidade de grana se impõe. Toda a ludicidade vai embora, pois o perigo de generalizar a violência, de promover a morte, ou, no mínimo de machucar as vítimas é concreto. E nos casos em que a atividade criminosa falha e o meliante é ferido, busca-se um médico amigo, pois bandido não pode dar entrada em pronto-socorro. Ao cabo, é preciso suporte para bem-exercer o crime.

Em meio a tudo isso, as pérolas de linguagem próprias da escrita de Mandingo: “Vagabundo olhava de canto de olho, umas putas sorriam, seu riso de anzol buscando peixe bobo.” Só um pequeno deslize eu vi, intencional, provavelmente. Paulista que aprendeu tantas coisas sobre mineiros, em especial sobre belorizontinos, em dois momentos de destaque à geografia do mais belo horizonte, menciona uma tal “rua Bahia.” Desconheço! A gente da terra diz “rua da Bahia.”

O primeiro parágrafo e a primeira linha do segundo em “Pìpoca” sintetizam o livro: “Barulho ensurdecedor ferindo os ouvidos. Tensão. A multidão em polvorosa nas ruas noturnas. Helicópteros. Medo. Tropas de choque. Um homem negro caído imóvel no chão deságua um rio de sangue: é carnaval em Salvador! Minha missão é atravessar meu corpo negro em segurança até o Garcia...” É essa travessia que autor, narradores e personagens fazem todo o tempo, nas condições que o real oferece, com malandragem para sobreviver e certa alegria, para que viver tenha alguma graça.

Assim são as agruras de um trabalhador negro que luta, literalmente, para chegar seguro em casa, depois do trabalho, na terça-feira gorda do carnaval soteropolitano: “Se descer pela Barroquinha é viola, os sacizeiros tiram meu escalpo e roubam até minha cueca. A Baixa dos Sapateiros já virou cidade fantasma do crack, e só quem não tem nada a perder é que correria o risco. A avenida Contorno, do outro lado, é outra conversa: Choque descendo, P.E. subindo e a gente da civil dando bote de paisano. Até eu explicar o dinheiro guardado no tênis, ia eu no rodão da 1ª e só quinta-feira tava solto. O jeito é mesmo atravessar a muvuca, seguir na levada, pronto pra tudo e entregar a Deus.”

Assim são os negros no carnaval de Salvador: “Os playboys dentro do cordão, fantasias exóticas, drogas liberadas, cerveja e gente bonita, como eles dizem por aqui. Câmeras de TV, artistas famosos, luzes de refletores, flashes e helicópteros, sobrevoando o circuito, tudo ao mesmo tempo. Nós somos o cenário pra festa deles.” Mandingo faz uma tomografia racializada da cidade.

O fim de tudo é o amor, porque mesmo contra a corrente, a gente é gente e quer amar: “Me espere minha pretinha, eu to chegando com o dinheiro enrolado na meia, minha mulher, chegando com vontade, que terça-feira de carnaval não termina assim, sem encontro de trios, só quando um de nós se desmaiar.”

Quando a leitura chega a “Por acaso”, único conto entre tantas crônicas boas, o desfile de vários estereótipos produz uma tensão quase desesperadora: o do homem negro, potencial ladrão e estuprador; o da polícia que julga previamente este homem e o extermina; o da mulher loira sozinha em horas suspeitas na quebrada, podendo, por esse motivo, ser mulher de traficante e ainda mais, se ela estiver numa noite azar, mulher do traficante que está em débito com a polícia. Estereótipo da polícia que desrespeita e mata, mas que em respeito a códigos humanos do passado pode ainda considerar o pedido de uma honorável senhora negra que intercede pela vida do sobrinho retardatário, que desobedecendo o conselho dela, chegou tarde da noite à quebrada, onde é de praxe jovens negros se ajoelharem para esperar a execução.

A narrativa é eletrizante, por exemplo, na forma como o menino negro, suspeito de ser ladrão, observa a moça branca temerosa de ser assaltada por ele: “Como tremia, a moça, dava quase pra sentir o cheiro do seu medo, do nervosismo com que se movia na cadeira, na respiração parada de bicho acuado, as mãos apertadas na bolsa preta de couro.”

É também controversa quando o narrador desenha uma loira lasciva como possibilidade de resposta ao estereótipo do negro estuprador: “Pressentia que esse medinho de puta tinha muito era de excitação reprimida, de vontade de dar prum macho mais forte, másculo, imoral, de pau grande e grosso.”

Por fim, chegamos a “Salvador negro rancor”, crônica que cedeu título ao livro. O início do texto é declaração de quem conhece a Angola na essência: “Uma cabeçada. Quando eu terminei meu rabo-de-arraia, o gringo me pegou na cabeçada: Fingiu que ia soltar outro rabo-de-araia por cima do meu, e retornou com a cabeçada. O não-esperado, a surpresa, o de repente do movimento, me jogou no chão com os meus anos todos de Capoeira. Ele ainda soltou uma chapa de costas raspando meu rosto, pra mostrar que podia ter me matado. Saí de lado no role, não caí de bunda no chão, mas de todo jeito, o sujeito tinha me desmoralizado, e tinha bem uns três mestres antigos tocando os berimbaus, sorrindo, brincando, debochando de minha falha.”

Depois, a definição mais linda que meus olhos já leram sobre a entrega no jogo de Angola: “Os golpes se sucediam, lentos e sincronizados, bonitos, ritmados pela languidez do toque do berimbau, a luz opaca que descia do teto enchia a sala de nostalgia, e eu pratiquei quase que em transe, aquela magia secular de resistência, como se corpo não tivesse, e fosse somente movimento.”

E, como ser angoleiro é viver a Angola na roda grande da vida, dois trabalhadores de padaria, um deles capoeirista, interpretam o mundo com picardia: “Esse pessoal, meu irmão, se fizer revolução, se fosse quilombo, não conseguia nem subir a Serra da Barriga, de tão gordos e cheios de comida e conforto, eles já não têm o direito animal de falar sobre a vida, porque eles são escravos do conforto, ta ligado?” Mais à frente, o mesmo trabalhador define o corpo adequado à prática da Angola: “Isso aí em você é músculo burro, duro, sem flexibilidade, não serve pra Capoeira Angola, que o corpo tem que agir na velocidade do pensamento.”

A mim causou desconforto uma referência a afro-feministas que seriam “comidas” por capitães do mato, incensados por negros românticos. O que me incomoda é a passividade das afro-feministas construídas no texto, parece que moldadas para passar das mãos supostamente justas dos homens negros bobões para as garras dos capitães do mato. É o machismo cotidiano internalizado se manifestando.

Mas voltamos a Angola e outra definição belíssima da Capoeira inunda o texto. Lembra Pastinha quando disse: “A Capoeira não tem início nem fim.” Mandingo nos diz que “A Capoeira é dialética em seu fundamento. Um pequeno número de ataques e defesas, que se combinam e se multiplicam infinitamente, criando variadas formas de responder ou desviar das perguntas lançadas pelos parceiros, de apresentar perguntas cujas respostas eles não possam solucionar, ou mesmo trancá-los em seu próprio jogo, até o momento certo de empunhar o golpe certeiro, infalível: o cheque-mate.”

E quando a gente entra numa roda de Angola, concentrado e atento é “um pouco como não ter medo da morte, como não poder se fugir do destino, sendo melhor então encará-lo, com firmeza e comportamento digno, estando preparado para o que vier pela frente.”

A mim o que resta, mano velho, é cantar, agradecendo a N’Zázi e a você: Angola eeeeeê / Angola ê / Angolá / Angola eeeeeê / Angola ê / Angolá / O meu pai veio de Angola, eeeeeeê / Minha mãe veio de Angola eeá /  Angola eeeeeê / Angola eeeeê / Angolá / Angola eeeeeê / Angola ê / Angolá / Eu também vim de Angola, eeeeeê / Mandingo veio de Angola eá / Angola eeeeeê / Angola ê / Angolá!

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