Obituário de uma lembrança


Por Cidinha da Silva




A notícia de tua morte chegou pela gentileza de uma mensagem privada de rede social, não por um mural público. Felizmente, pois ficaria ainda mais desacorçoada.

És a primeira pessoa de meu círculo próximo de convivência assassinada e quero que seja a última. Não sei lidar com isso e não quero aprender. Sou fraca e insignificante. Não tenho a força da poeta que declara firme: dos nove homens de minha família assassinados, sete foram mortos pela polícia.

A primeira pergunta que me fiz foi pelos teus filhos, como estariam, como ficariam. Numa das várias viagens que fizemos à Genebra, no início da década de 2000, fomos vizinhos de cadeira e conversamos sobre nossas vidas pessoais, para além do ativismo político que nos unia. Perguntei-te se tinhas filhos. Dois, me respondeste, dois meninos. Em algum momento me contaste que havias sido criado por mulheres, a mãe e as tias, e eu disse que meninos precisam mais da figura do pai do que as meninas. Que um homem é fundamental na formação de outro homem. Tu me ouviste, entre a serenidade e o susto.

Prosseguias calado e continuei a falar. Abri um capítulo sobre os homens que abandonam os filhos em nome do trabalho, das causas políticas. Tu argumentaste que a causa era maior do que tudo. Eu disse que nada era maior do que os filhos e nossa responsabilidade por eles, e que, nos homens, a satisfação do ego costuma movê-los mais do que a causa. Tu ouvias, quieto, reflexivo, como se eu fosse uma mãe grande e tu, um guri pequeno.

Em Genebra te vi triste, sozinho, amargurado, mas ali não conversamos, como havíamos feito no avião. Pudera. O mundo dos homens é cruel, implacável, e os velhos lobos não abrem espaço para o lobo novo que chega sequioso de caça e poder.

Voltamos, a vida seguiu. O projeto em que apostaras todas as fichas naufragou. Tu saíste de cena, recomeçaste em outra área, que décadas mais tarde se revelaria trágica. Voltaste a teu próprio começo, a atuação em sindicatos.

De um sindicato viriam os que te mataram, como disse alguém, integrantes de máfias que, além de bloquearem as conquistas de direitos pelos trabalhadores, corroem a democracia e lançam mão de expedientes vis de imposição da vontade pela força.

Outra vez te encontrei num aeroporto e perguntei pelos teus filhos. Estão se tornando homens, me respondeste pimpão. E eu disse: é assim que tem que ser. Rimos. Me contaste que havias descasado. Perguntei se os meninos estavam contigo. Respondeste que não, estavam com a mãe, como devia ser. Rimos outra vez e ao nos despedirmos, comentei que assim era, se tu achavas que deveria ser.

Depois da fatalidade da notícia, nutro a certeza renovada de que amaste muito a teus filhos, embora, talvez, não o tenhas dito na medida que gostarias. Estou certa também de que se tornarão bons homens que honrarão tua memória.

Despeço-me de ti apagada pela tristeza e pela perplexidade. O N”Zázi que habita em mim saúda o Xangô que habita em ti e clama a Zambi e às Águas que deem paz a teu espírito.

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