O dia que a tela do Jornal Nacional ficou negra


O dia que a tela do Jornal Nacional ficou negra


Durante alguns segundos a tela do Jornal Nacional foi tomada por dois jornalistas negros, uma mulher e um homem. Os comentários em relação a uma postagem sobre o fato dizem muito sobre como as pessoas lidam com a questão racial
Por Cidinha da Silva
Esta é uma matéria da Fórum Semanal. Confira o conteúdo especial da edição 208 clicando aqui
A imagem que ilustra esta crônica apresenta situação de trabalho dos jornalistas Heraldo Pereira, substituto eventual do âncora do Jornal Nacional, e Maria Júlia Coutinho, responsável pelos criativos anúncios e comentários sobre chuvas, sol e temperaturas no país.
Costumo responder à pergunta sobre a hipotética influência ou impacto da recepção dos meus textos veiculados na web em minha forma de escrever por meio de uma negativa, ou seja, não me influencia. Escrevo o que quero e como quero, sem me preocupar com a recepção, entretanto, quando arranjo tempo para acompanhar algum debate gerado pela crônica, os posicionamentos costumam suscitar outra escrita.
Foi o que ocorreu com a imagem acima, postada por mim em minha linha do tempo de uma rede social, precedida do seguinte comentário: “Maria Júlia Coutinho e Heraldo Pereira no Jornal Nacional de ontem, vale o destaque pelo ineditismo da cena (ainda que estejamos na segunda década do século XXI)”.  O conjunto imagem / afirmação não viralizou, porém, para minha surpresa, rendeu volume significativo de participações via compartilhamentos e, principalmente, comentários. Confesso que me divirto analisando a recepção do que escrevo e é publicado no cyberespaço. É um satélite muito diferente do planeta da publicação impressa, mas isso é tema para outra crônica.
Maria Júlia Coutinho havia superado o episódio recente de discriminação racial sofrida na web, encerrado com direito de resposta em grande estilo na tela do programa jornalístico. Heraldo Pereira, com o bom desempenho de sempre, nos embalava com  voz doce e dicção perfeita, afinada, até. E então, os dois protagonistas negros, de maneira inédita na história da TV brasileira, adentraram as casas de milhões de pessoas, guiados pela sobriedade e competência habituais, mas juntos, ao mesmo tempo. Durante alguns segundos a tela do Jornal Nacional foi tomada por dois jornalistas negros, uma mulher e um homem.
No dia seguinte fiz a singela postagem referida, uma percepção óbvia e ácida da novidade. Entretanto, chocada pela novidade, muita gente sentiu necessidade de se posicionar. A começar por um cidadão que louvou o meu entusiasmo, algo que, em absoluto, não intentei sugerir. Apenas fui irônica, o entusiasmo é por conta da interpretação dele. No entanto, reconheço que, mesmo escritora de ofício, corro o risco de não lograr dizer o que pretendo e talvez por isso um leitor confunda ironia com entusiasmo.
A reação numericamente majoritária foi a dos que desejam que tudo continue como dantes no quartel das assimetrias raciais de Abrantes, haja vista que seus postos e patentes estão salvaguardados e qualquer movimento construtivo no cenário racial pode abalar os privilégios dos herdeiros da casa grande. Foram abundantes frases como: “precisa dessa apologia? Por que o fato de serem dois negros tem-se que achar ineditismo?” Ou, “Viu como tem racistas? Eles sempre veem racismo em tudo! Eu só fui entender o assunto após ler os comentários”.
Percebamos que não é necessário para o seguidor de Abrantes explicitar a apologia criticada, porque existe algo dado, o interdito do racismo brasileiro, orientador poderoso mais frequente nas relações humanas por aqui. Além disso, no mundo desenhado por Abrantes, seria muito comum ver pessoas negras em posição de destaque na principal rede televisiva do país. Logo, não se justificaria o espanto. E a pá de cal é a acusação de que são os negros com suas expressões incorretas (o destacado ineditismo da cena) que instauram o racismo.
Ainda no diapasão de manutenção do status quo, registraram-se as afirmações: “isso quer dizer que eles venceram na vida” e mais meia dúzia de bobagens (ou racismo cristalizado como açúcar), tais como, “no cemitério tem buraco igual pra todo mundo”; “deus criou o ser humano”… e toca-lhe conhecimento pseudocientífico sobre melanina.
A frase-clichê “eu fico triste com o ser humano que presta atenção nesse detalhe. Para mim vejo duas pessoas. Se é branco, preto, albino, amarelo… somos todos seres humanos iguais, filhos do mesmo pai”, abre o pelotão dos ingênuos no trato das assimetrias raciais. Houve os que disseram que não perceberam, para eles foi normal. Seria a normalidade sinônimo de habitualidade? Eu me perguntei.
Brotaram também os mais descolados que ingênuos, no melhor estilo Fernanda Lima: “ué! Acho tudo tão normal. O que houve de extraordinário? Dois ótimos profissionais, não é isso? Uma dupla como outra qualquer.” Oxalá, um dia seja, mas nos padrões raciais eurocêntricos hegemônicos que regem a sociedade brasileira, dois profissionais negros, juntos, naquela condição, são raros.
Além do collor blind, manifestaram-se os pretensamente ingênuos. “Não entendi o espanto da imagem. São excelentes repórteres no exercício da profissão” e ainda, “como os dois (negros de um modo geral) tem que revidar com competência e isso eles têm”. O xarope inócuo da meritocracia é apresentado reiteradas vezes como panaceia para o problema do negro no Brasil, contudo, o suposto ingênuo não abre mão da pretensão e da arrogância para prescrever como os negros devem se comportar rumo à superação do problema racial.
Houve também aqueles que caracterizei como otimistas e que asseveraram coisas como: “e a história continua mudando, outros tempos. Quem achou que isso não fosse acontecer, errou”. É importante mesmo nutrir visões otimistas da humanidade e vibrar com as conquistas, mas sem perder de vista a criticidade. Houve também o sentimento de recompensa, talvez externado por alguém calejado na luta contra o racismo: “achei que nunca veria isso”.
O ufanismo tomou conta de muitos: “estava adorando esse dia”; “adorei, momento lindo”; “show”; “fiquei tão feliz”; “sensacional.” Por fim, segundo a versão entusiasta, “devemos todos nos sentir orgulhosos.”
O estranhamento das opiniões críticas foi o que mais acrescentou ao debate: “por alguns minutos pensei que estava na casa do primo que mora em Toronto”; “eu bati o olho e pensei que fosse um canal de TV norte-americano”; “a aparição foi simbólica porque quebrou a convenção do telejornalismo dinamarquês praticado no país”. Os jovens com a irreverência permitida pela idade trataram logo de berrar: “vai tá tendo negros em todos os lugares, sim. É bom ir se acostumando”. Outros destacaram os bons exemplos de negros bem sucedidos, necessários à formação dos filhos e também exemplificaram situações correntes de discriminação no mundo midiático.
Diversos críticos focaram a artilharia na demagogia, cinismo e hipocrisia da Rede Globo no tratamento dispensado à política, às questões raciais e às pessoas. E depois que Maria Júlia Coutinho entrou de férias dois ou três dias após a dobradinha histórica com Heraldo Pereira, faz todo sentido o excerto crítico final: “toda vez que vejo a Globo fazendo coisas que parecem avanço, me pergunto o que eles querem com isso”.

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