Íntegra da entrevista concedida por Cidinha da Silva à Revista Fórum para matéria sobre a solidão da "mulher negra"


1) O texto de Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar Sem Asas partiu de experiências pessoais suas ou você conversou com outras mulheres negras para escrevê-lo? Como se deu o processo de produção e por que este nome foi escolhido?
O texto foi escrito para a Cia de Teatro Negro Os Crespos. A demanda foi de um texto sobre afetividade das mulheres negras tendo por base 55 entrevistas realizadas durante a pesquisa do espetáculo a mulheres negras de diferentes perfis: presidiárias, universitárias, catadoras de material reciclável, trabalhadoras de salões de beleza, sambistas, estrangeiras, moradoras de rua, ente outras.
A solidão não era um tema. O tema era afetividade entre mulheres negras. A solidão emergiu com força das entrevistas e acabou por compor boa parte dos arquétipos construídos para as personagens, como aconteceu também com a lesbianidade. .
Quanto ao título da peça, foi algo escolhido pelos Crespos. Trata-se de verso de poema da lavra de Maria Tereza Moreira de Jesus, poeta negra paulistana, falecida em 2010 e homenageada pelo grupo.

2) Por que decidiu transformar em obra o tema da solidão da mulher negra?
Como disse, a solidão não era o tema da peça. À medida que o tema da afetividade entre mulheres negras era investigado, a solidão gritou, em certos momentos de maneira desesperada e desesperançada. A solidão emergiu como força telúrica das entrevistas e acabou por compor boa parte dos arquétipos construídos para as personagens.

3) De que forma avalia a maneira como o assunto tem sido tratado nos espaços de militância do movimento negro e do feminismo? Acha que a internet e as redes sociais têm ajudado a amplificar a discussão?

Esta é uma questão preponderante para boa parte das mulheres negras, principalmente as heterossexuais. Parece-me que há dois vetores importantes.
O primeiro refere-se essencialmente ao campo afetivo-sexual, ou seja, a falta de parceiros, principalmente para relações estáveis e companheiras. Aquilo que a demógrafa Elza Berquó demonstrou fartamente ainda nos anos 1990.
O segundo vetor refere-se ao abandono sofrido pelas mulheres negras na condução das famílias, na educação dos filhos, no provimento da vida de pessoas sob sua responsabilidade.
O primeiro tema tem sido objeto exclusivo de grita por parte das mulheres negras que se sentem sozinhas, principalmente as jovens que têm reclamado de maneira bastante enfática, do quanto os homens negros as preterem em favor de mulheres não-negras.
Para sabermos o que circula pela cabeça de muitos homens para que essa escolha aconteça, podemos recorrer ao historiador Joel Rufino dos Santos, recentemente falecido, que em 1995, no livro Atrás do muro da noite, publicado pela Fundação Cultural Palmares,à qual presidida à época, respondeu à pergunta “por que os homens negros que ascendem socialmente, escolhem logo uma branca, de preferência loira”? Cito de memória: “A parte mais óbvia da resposta, é que a branca é mais bonita do que a loira e quem prospera, troca automaticamente de carro. Quem me viu dirigindo um Fusca e hoje me vê dirigindo um Monza, sabe que eu não sou mais um pé rapado. Mulheres, como carros, são símbolos!” Creio que não é preciso explicar, o texto fala por si.
Quanto ao segundo vetor, a solidão das mulheres negras na manutenção das famílias, trata-se de um fenômeno mundial, inclusive em África. Os motivos são diversos: perda dos companheiros para as guerras civis, para a Aids, para o álcool, para os mares, seja em naufrágios de barcos em que fogem das péssimas condições de vida em busca de uma vida melhor, seja quando sobrevivem aos mares, se estabelecem em outros países e formam outra família, esquecendo-se da mulher e dos filhos que ficaram no país natal. E também, é óbvio, por irresponsabilidade com a família, descompromisso com os filhos, desrespeito às mulheres, machismo, misoginia, etc, além de serem os alvos preferenciais da polícia, levando-os a compor cifras astronômicas de homens assassinados.
Neste vetor têm se detido instituições humanitárias, serviços de proteção à mulher, organizações feministas negras, organizações de mulheres negras e, de maneira sazonal e ainda pouco representativa, alguns indivíduos negros, e alguns coletivos de homens negros, de maneira ainda mais rarefeita.
Não tenho opinião formada sobre o papel da internet e das redes sociais no aprofundamento do tema, que me parece ser a necessidade. Quanto à amplificação, sim, a Web amplifica tudo, para o bem e para o mal.

4) Como você, enquanto mulher negra, vivenciou essa questão da solidão e do preterimento?
Tenho dificuldade de responder a esse tipo de questão. Explico e, se a resposta for aproveitada, gostaria que o fosse na integralidade. A vida pessoal faz parte da política, indubitavelmente, mas o tempo em que vivemos parece ser adepto à evasão do privado. É exatamente de evasão que falo, evasão pela vitrine, pelo holofote. E a vitrine é um espaço de exposição, não de cura. Desse modo, para mim, não existe sentido em cultuar a vitrine. Vitrine é algo adequado ao trabalho.
A solidão da mulher negra que tem ocupado meu pensamento não é exatamente aquela a que a pergunta se refere, é, por exemplo, a solidão de ser única em espaços de poder, definição, comando. De ver apenas uma mulher negra ocupando esses lugares por vez. De quase nunca haver várias mulheres negras no poder ao mesmo tempo. A diminuição desse isolamento ocupa meu pensamento.

5) Nas entrevistas com a Ana Cláudia e com a Claudete Alves, conversamos sobre os caminhos para se reverter essa cultura que relaciona as mulheres negras ao “mercado do sexo” e as brancas “à cultura do afetivo”, do casamento, da união estável. Na sua análise, o que é necessário fazer para combater esses estereótipos já arraigados no imaginário coletivo brasileiro? A arte pode contribuir com isso?
Penso também que os parâmetros em que a discussão sobre a solidão da mulher negra têm sido postos são extremante heteronormativos. Gostaria de ver as mulheres negras em posição mais libertária e autônoma. Os homens ainda ocupam a centralidade em questões das mulheres.
A arte pode contribuir com todos os temas, ela existe porque a vida é insuficiente, não é isso? Mas, ando querendo ver o enfrentamento da heteronormatividade internalizada.

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