Sobre os que juntam vinténs na microeconomia do carnaval


Por Cidinha da Silva

Antes de conhecer o carnaval de rua de Salvador, mais precisamente o circuito do Campo Grande, o retrato instantâneo da precarização do trabalho negro em minha cabeça era a greve dos garis cariocas de 2013. Agora tenho outro, a microeconomia do carnaval soteropolitano.
Mulheres negras, todas negras, dominam o mercado da comida de rua durante a festa. Tradição herdada das pretas de ganho do século XIX, das baianas do acarajé e outros quitutes do século XX para cá. Herança também de diversas impossibilidades consolidadas que as leva a desenvolver funções laborais nas quais possam manter os filhos por perto. As duas crianças encolhidas, dividindo uma caixa de isopor como cama exemplificam a situação de mulheres que não têm com quem deixar os filhos enquanto trabalham.
Elas despendem horas e horas cozinhando junto com outras mulheres em casa. Previamente pesquisam preços para comprar ingredientes em grande quantidade, feijão, carnes, farinha, pratos, copos e talheres de plástico. Catam o feijão, picam carnes, deixam de molho, escaldam, temperam, cozinham.
Preparam fogareiros, recipientes plásticos com tampas, imensas colheres de pau e panelas e os transportam em inacreditáveis motocas, até carrinhos de mão, para quem mora mais próximo do centro. Ônibus, vans, caronas de amigos ou parentes, aos quais se paga uma cerveja. Carros próprios, muitas vezes recolhidos pela fiscalização urbana por falta de condições para circular com segurança pelas vias públicas.
Os homens sairão de casa mais cedo. Não pense que serão poucas horas. São dois dias, talvez três. Estirarão caixas de papelão desfeitas nos melhores pontos das calçadas centrais do desfile e das ruas laterais, aonde serão instaladas as caixas de isopor repletas de gelo e de latas da marca de cerveja monopolizadora do carnaval inteiro e garrafas plásticas de água. Sem esquecer o fogareiro, as panelas, os tamboretes para as trabalhadoras se sentarem e demais apetrechos para alimentação dos foliões, trazidos pelas mulheres.
Alguns desses homens com muitas mulheres de todas as idades e adolescentes recém-saídos da infância, comporão o grupo de cordeiros em diferentes blocos. Cronistas mais românticos e curtidores, ávidos por encontrar marcas de subversão dos empobrecidos em tudo, destacarão os cordeiros e cordeiras que “curtem mais do que os foliões protegidos pelas cordas.”
Eu, cronista mais pessimista, talvez, notarei expressão frequente de tédio, cansaço físico, fome e sede nas pessoas responsáveis pelas cordas que mantêm a distância entre os foliões uniformizados e a pipoca. Afinal, não sei se os otimistas sabem, mas quem ganha tostões pelo trabalho, não pode desperdiçá-los comprando água mineral. Há que esperar o fim da jornada, a generosidade do contratante (que parece não existir durante o trajeto) ou os donos de bar que liberem copos de água da torneira.
De manhã, quando as ruas estiverem livres, os camelôs se instalarão com suas barracas móveis para vender as promoções do dia: turbantes, chapéus, fantasias, óculos escuros, viseiras, protetor solar, capa de chuva, etc.
Entre o final da manhã de reposição das comidas e o início dos desfiles da tarde, meninas de dez anos e pouco mais velhas passarão entre os trabalhadores e trabalhadoras carregando pesadas sacolas e gritarão “olha a quentinha, olha a quentinha.”
No supermercado haverá promoções do cartel da cerveja. Jovens maquiadas, trajando curtos e apertados vestidos laranja oferecerão vantagens e prêmios aos pequenos comerciantes que compram cerveja e água para revenda. O estabelecimento destinará quatro dos dez caixas disponíveis para atendimento exclusivo aos compradores de bebidas.
Haverá uma adolescente extenuada, assentada sobre vasilhames de água mineral. A mãe, não menos cansada, ficará enternecida com o estado da filha e arrumando suas tranças lhe dirá: “você me ajuda a levar essas bebidas, depois vai para casa dormir e volta à noite.” A mãe que não dormiu a noite anterior trabalhará todo o dia, movida pelo energético da necessidade. E quando a filha voltar, ela não irá para casa dormir, porque nunca a deixaria sozinha exposta aos bêbados e estupradores de plantão.
Ainda na função de cronista realista, ou pessimista, se quiserem, relativizarei o humor como ato político de resistência percebido nas fotografias dos meninos negros que sorriem e cantam enquanto são enquadrados pelas brigadas policiais, postadas pelo poeta.
Até acho a ideia de resistir à truculência via ironia uma coisa bonita, vista do ar condicionado e da cadeira confortável de onde escrevo, contudo, se eu fosse um daqueles garotos negros apalpados, abusados sexualmente por policiais-brucutu, eu não conseguiria sorrir, nem cantar, como vários deles conseguem. Eu não me arriscaria a topar com um policial mal humorado e descontrolado que quebrasse meus dentes em resposta ao sorriso e ao canto. Ou que pudesse me roubar a vida num beco escuro qualquer, convertendo-me em mais um Amarildo.
A favela resistente nas regiões centrais alugará o pátio de entrada como estacionamento para os carros de foliões. Os motoqueiros do lado de lá da linha do trem compensarão como puderem a falta de mobilidade urbana, a diminuição injustificável do transporte coletivo e preço abusivo de muitos táxis.
O faxineiro do prédio de classe média montará uma barraca para vender feijoada e cheio de orgulho, durante seis dias, será o dono de um negócio. Estará liberto da farda, dos moradores mandões e mal educados, da síndica insuportável e decadente. Durante um pequeno período ele será patrão de si mesmo. Deixará de ser o reles Fu, irmão do Dido, goleiro do baba de domingo.
Sem mais, aquele abraço para o pessoal que dinamiza a economia da festa popular, alheio à oscilação da bolsa dos abadás e pulseirinhas de camarote. Às trabalhadoras e trabalhadores usurpados pelos ficais da prefeitura que querem obriga-los a vender a marca de cerveja patrocinadora da festa. Que se insurgem contra o prefeito novo, representante do coronelismo revigorado na expressão “nós queremos que eles vendam mas precisam seguir as normas colocadas pela prefeitura” e obstruem a trajetória dos blocos no circuito rico e turístico.
Precisa-se respeitar a “colocação”, como o prefeito diz, para, pretensamente, substituir a imposição, a ausência do debate, da negociação entre as partes interessadas. Mas dá tudo no mesmo, ou seja, tira-se a regra de um lugar, a gaveta, e coloca-se em outro, sobre a cabeça dos comerciantes de rua.
Soterópolis continua linda e os resquícios da escravidão, vivíssimos, como sempre estiveram.

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